Voltar a ser criança, como seria?

Não há páginas que descrevam tão bem o passado como a nossa memória. Nem imagens, muito menos palavras e melodias. A menos que sejamos dotados. A memória é um saco enorme, ao qual olhamos para dentro e apenas vemos os objetos à superfície. Aqueles que estão no fundo (lá mesmo no fundo, prestes a romper) são constantemente esmagados pelos novatos. Esta é a nossa cabeça, um saco de memórias e pensamentos.

voltar a ser criança

Como seria voltar a ser criança?

Ponho a mão neste saco, como sempre às cegas, e retiro vários cubos enevoados. À claridade, a tempestade afasta-se e deixam-se transparecer figuras. O primeiro treme com a voz de um pai:

“Clara , cuidado com o cão, não te aproximes!”

“Papá… não morde, é só brincar…”

As figuras desvanecem com o silêncio e a linha sinuosa ondula para o segundo cubo, despercebidamente.

Ao longe observam-se pequenos e pequenas a brincar, a correr, a cair e levantar. De perto (tão perto!) observo e quase toco numa pequena encostada a um canteiro circular de amores – perfeitos. As mãos brancas desenham histórias na gravilha, e a boca vermelha canta baixinho. Baixinho ( e assim me habituei). Devagar se aproximam três raparigas que me entregam uma carta. E como se retrocede, a menina cresce e não muda, e as cartas diferentes caiem três vezes a seus pés, três anos dividindo o cubo. Uma carta que se lia e se preenchia com uma cruz. E que pergunta tão simples que a decorava! Duas respostas possíveis, e a positiva reinava sempre. E ao reinar, era tudo tão simples!… tão belo e inocente como o sol que arde, a água que molha, e o pó que se espalha. Amor, além de simplicidade, dava mãos à naturalidade.

O meu coração é a nascente
a minha inspiração é um rio
a minha mão é a cascata
as minhas palavras são água
a minha mensagem é Natureza.

E daí começou o sonho de ser poeta. Era feliz ao pedir palavras para compor quadras, mais tarde sonetos, e mesmo até odes. As memórias voam de cubo em cubo. Vejo quedas atrás de quedas. (Tanto que se caía, e tão fácil era erguer!). Asneiras curáveis. (Castigos apenas por se merecer!) Um concerto ao luar, e a minha voz ao questionar “ Porque é que a Lua está tão grande e laranja?” Não me souberam responder. Nasceu então a curiosidade, na cabeça da menina que amava a Lua, e vivia no café Sol Nascente.

“Recordar é Viver”

E mais ainda se vive os momentos passados se em nós residir o desejo de estes se tornarem presentes. Ser criança, ao contrário do que muitos pensam, não é sinal de imaturidade. Recorde-se que sendo criança, sonha-se em ser adulto, ser tudo de todas as maneiras. Ser tudo! Ao crescer, a infância fica para trás, e somos nada em relação aos sonhos que vivemos enquanto inocentes.

Quando é bom ser criança?

Quando os problemas não são complicados e precisamos de coragem para os resolver. É como dar um passo sem medo de pisar alguém. Quando amamos, e precisamos de ser verdadeiros. É como abrir os olhos, e à luz ver o mundo tal qual como ele é, sem corte e costura. Quando nos vemos no nada, e necessitamos dois maiores valores da pureza que em tudo a criança abraça. É como riscar a felicidade numa folha de papel.  Sermos aquilo que parece ser nada, e simplesmente, refletir-mos nas cores que nas linhas pintam o ar puro.

“Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Nas mãos de uma criança.”

António Gedeão, Pedra Filosofal

Artigo escrito por Clara Godinho, colaboradora do Sentimento Calmo.